Esse texto foi retirado da minha participação em uma roda de conversa realizada nesta tarde pelo Comitê de Diversidade da SKY Brasil, para o Dia Internacional do Orgulho Lésbico.
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No livro O circuito dos afetos, Vladmir Safatle retoma um relato, que pode ter raízes em narrativas históricas ou reinterpretadas em contextos filosóficos, onde os citas, um povo originalmente livre e guerreiro, são subjugados e escravizados.
Eles são dominados e forçados a trabalhar sob o controle de um poder tirânico e, ao tentar se rebelar, param diante do chicote, que, nesse contexto, é o símbolo central da dominação. Ele não é apenas uma ferramenta de punição física, mas um emblema da imposição de uma nova ordem de trabalho e obediência, que transforma o corpo e o espírito dos escravizados.
O chicote representa a força disciplinar que mantém os citas subjugados, impondo a eles uma nova forma de existência, que contrasta com sua vida anterior, de liberdade. O símbolo vai além da coerção física: encarna a ideia de que o trabalho forçado, a disciplina imposta e a violência são mecanismos de controle que reorganizam toda a vida social e subjetiva dos dominados.
Por que eu gosto dessa narrativa? Porque ela permite explorar a maneira como os mecanismos de poder e dominação moldam subjetividades, criando condições onde a violência e a opressão se tornam internalizadas.
A história dos citas serve como exemplo de como um povo livre pode ser transformado em um coletivo de trabalhadores subjugados, cujas vidas são regimentadas pelo poder da disciplina.
É uma crítica às formas contemporâneas de poder e do uso político da força disciplinar do trabalho, uma ordem que reorganiza profundamente as vidas das pessoas que estão sob seu controle.
A importância do orgulho para as existências
E o que isso tem a ver com o orgulho que estamos aqui para celebrar?
Uma das definições de orgulho no dicionário é a de um sentimento de prazer, de grande satisfação com o próprio valor, com a própria honra. Orgulho esse que, se não há resistência e luta para que seja expresso, mina existências em meio às muitas forças disciplinares às quais estamos expostas.
Ocorre que se estamos hoje aqui, e precisamos do trabalho, é porque não fazemos parte da classe de pessoas chamadas herdeiras.
E desde Hegel que o trabalho não é somente sobre geração de riqueza e valor, mas também uma forma de reconhecimento social. Quando nos apresentamos, falamos sobre nosso trabalho como parte do que nos permite moldar nossas próprias identidades, em diálogo com nossos projetos de vida.
O que cada pessoa entende como uma boa vida
Sobre isso, vou trazer uma outra referência, que é o conceito de projeto de vida dos Yshiro, povo originário latinoamericano, que pode ser encontrado no livro Pluriverso: um dicionário do pós-desenvolvimento. Para eles, projeto de vida é tudo aquilo que uma pessoa entende como uma boa vida. Ou seja: é plural e pode ser visto também de uma perspectiva individualizada — o meu projeto de vida é legítimo e diferente do de vocês, e assim sucessivamente.
No entanto, ser individualizado não significa ser egoísta, porque independentemente de qual seja o meu projeto de vida, ele depende do ambiente para ser posto em prática, da mesma forma que nós dependemos das diferenças, da alteridade, para construir nossas identidades: eu me reconheço como Cecília porque interajo com diferentes pessoas e me reconheço em algumas coisas e me diferencio em outras.
Orgulho como meio de comunicação
Para começarmos a unir as pontas trazidas pela minha fala, quando sabemos que o trabalho é uma força política disciplinante — e ele não é a única —, que, historicamente, moldou nossas existências e as reconfigurou ocupando um espaço relevante para nosso reconhecimento social, e olhamos para esse contexto em um paralelo entre o que se dá na sociedade e nos ambientes corporativos, vemos por que a apropriação do orgulho é tão importante e a luta por mais diversidade, idem.
O orgulho nos permite a liberdade da existência e a força da resistência necessárias como contraponto às forças disciplinares que pressionam para que nos moldemos às regras ontonômicas e heteronômicas. Ontonônicas são aquelas normas “tradicionais”; heteronômicas as impostas pelos outros, como leis, códigos, procedimentos.
O orgulho — apropriado com o significado de sentimento de prazer, de grande satisfação com o próprio valor, com a própria honra — nos permite o exercício da autonomia, que é quando um grupo ou comunidade cria suas próprias normas.
É o orgulho que nos move a ocupar espaços de representatividade, nas esferas tradicionais de poder e controle, institucionais ou não, como o executivo, o legislativo, o judiciário, o hospital, a escola, as altas lideranças das corporações.
Desta forma, podemos trabalhar com mais autonomia para criar regras e normas que atendam às diferentes necessidades de existência, aos diferentes projetos de Vida, assim, com letra maiúscula — porque a ampliação do exercício dos Direitos Humanos não retira uma linha de direitos já adquiridos por camadas mais privilegiadas da sociedade, e aqui falo do meu lugar de extremo privilégio como mulher branca, cisgênero, com acessos que me permitiram ocupar espaços até hoje proibidos a outras mulheres, como as mulheres negras, trans e travestis, ou mesmo as brancas com expressões que afrontam e agridem as normas ontonômicas e heteronômicas.
Celebrar este dia do orgulho lésbico, e todos os outros dias de orgulhos, é, sobretudo, um exercício de apropriação da nossa existência e de ampliação dos campos de diálogo na direção de que sociedade desejamos. E de como colocamos em prática normas, regras, códigos e performamos em nossos pequenos espaços de poder e disciplina.
Para finalizar minha proposição e abrirmos a conversa, circulamos em ambientes corporativos, que, por definição, são ambientes de poderes, disciplinas e desigualdades, expressas pela hierarquia de cargos — e salários! —, pelos códigos de ética e conduta, pelos códigos de comportamento para pessoas funcionárias, pela estrutura de compliance e governança… Cada item desses é colocado em prática por pessoas, com seus vieses, experiências e preconceitos. Aí começam os enfrentamentos.
Caminhos para alianças
Assumir nossos preconceitos é o ponto de partida para o exercício do orgulho e do que é ser uma pessoa aliada.
Reconhecer privilégios, idem. O exercício da empatia passa por compreender existências e experiências plurais, que explicam diferentes formas de pensar, agir e reagir ao entorno.
Relativizar o que pensamos a partir dos vieses que trazemos pelas nossas experiências individuais e pelas nossas aspirações sobre o coletivo é essencial para uma prática inclusiva, que promova avanços rumo à equidade.
Por último, mas não menos importante, compreender nossas fragilidades contra a força do sistema, simbolizado na narrativa do Safatle pelo chicote, é fundamental para assumirmos que não mudamos realidades sozinhas, assim que o diálogo é o caminho.
Então, vamos a ele!