Conversei com a Ana Ghisleni, professora, pesquisadora e pessoa que admiro bastante, sobre esse tema, para um podcast que é parte da disciplina Gestão Estratégica na Educação, do MBA em Gestão de Alta Performance na Educação, da Unisinos.
Foi uma conversa muito produtiva sobre o quanto estabilidade é fundamental para flexibilização, e você pode ouvir aqui. Se preferir, abaixo está a transcrição da conversa.
Cecília, no que dá pra flexibilizar e no que a estabilidade ajuda?
Penso que para começar a responder essa pergunta é preciso alguns passos para trás para enxergarmos os contextos nos quais flexibilidade e estabilidade convivem, como estão relacionadas e por que são características e comportamentos fundamentais de serem priorizados em uma gestão estratégica.
Vamos lá:
Independente do segmento de atuação da organização, o que faz com que as pessoas sintam estabilidade?
Como premissa, vamos admitir que as organizações operam em ambientes de dissonância: a distância entre o que as pessoas que trabalham consideram um bom ambiente profissional e de condições de desenvolvimento e o que as empresas acham que as pessoas funcionárias querem continua grande.
Veja só os dados da terceira edição do relatório Well-being at Work Survey, da Deloitte: as organizações têm enfrentado desafios crescentes que incluem o esgotamento dos trabalhadores e o declínio da saúde mental, violência no local de trabalho, eventos climáticos extremos e muito mais. Tirando os eventos climáticos extremos, para os quais todos nós contribuímos como sociedade, mas que não podem ser solucionados de forma independente pelas organizações, todos os demais são criados dentro dos seus próprios ambientes, das suas próprias culturas — numa definição simples, a forma como as coisas são feitas dentro de cada organização (Nota: se quiser ler mais sobre o que escrevi citando esses dados, veja aqui).
Então, vamos à relação entre estabilidade e flexibilização.
Ambientes de estabilidade só são possíveis onde há clareza sobre a ética da instituição, expressa não somente na governança, na cultura e nos mecanismos de gestão, ou seja, mas necessariamente na forma como as pessoas se valem dessas regras — ontonômicas e heteronômicas.
É a forma de operar as regras ontonômicas e heteronômicas que permitirá experienciar um lugar onde há estabilidade — de ser, sentir e performar para o trabalho — e de criar espaços de autonomia, ou seja, espaços para flexibilidade, onde as pessoas podem construir suas próprias regras.
Vamos pensar em um exemplo do que estou falando: temos uma equipe responsável pela gestão da qualidade na nossa instituição de educação.
Essa equipe trabalha, como todos nós, no limite — porque nunca dispomos das pessoas e dos recursos de que desejamos, mas sim daqueles que nos são dados.
Para além do estresse intrínseco ao fazer profissional nessas condições, como é a liderança dessa equipe? Há segurança psicológica? Estamos em um ambiente livre de assédios? Há autonomia na equipe, ou a liderança se comporta como uma chefia, atuando na microgestão daquelas pessoas? A equipe tem conhecimento sobre a estratégia, sobre os objetivos estratégicos da instituição e qual é o seu papel para o seu atingimento? São pessoas com olhar sistêmico, com habilidades e competências que as permitem ler contextos e cenários e considerar o impacto das suas ações e decisões?
Estamos falando necessariamente de pessoas e do relacionamento entre elas, que será determinante para que a flexibilidade possa ser um ativo para determinada gestão e equipe, o que trará agilidade nas respostas e um comportamento accountable, que é quando temos equipes com responsabilidade coletiva, e que trabalham juntas para alcançar metas e objetivos comuns.
E qual é o papel do gestor no equilíbrio entre esses dois movimentos?
Lideranças têm papel fundamental nesse cenário, que passa pela mudança de mentalidade de extrair valor das pessoas para ajudá-las a prosperar.
8 em cada 10 pessoas em posição executiva, entrevistadas nesse relatório Well-being at Work Survey, da Deloitte, que eu mencionei anteriormente, dizem que ambientes com mais bem-estar e conexão, ou seja, mais estáveis, trariam benefícios para a captação de novos clientes e serviços mais bem ofertados, ao tempo que 43% das pessoas que trabalham dizem que seus trabalhos os deixaram melhores hoje do que quando entraram — ou seja, para a maioria das pessoas, 57%, seus trabalhos ou as deixam estagnadas, ou piores do que eram quando entraram.
Já a pesquisa State of the Global Workplace, da Gallup, aponta como dimensões de engajamento as pessoas se sentirem acolhidas pelo time, saberem que podem contar umas com as outras e terem bom relacionamento com seus gestores diretos.
Agora olha a dissonância entre lideranças e liderados: 90% das pessoas líderes acreditam ter um efeito positivo sobre o bem-estar dos funcionários, o desenvolvimento de habilidade, avanço na carreira, pertencimento e senso de propósito, mas menos de 60% dos trabalhadores concordam.
Cecília, quero te ouvir um pouquinho sobre os desafios da gestão de pessoas na educação a partir das tuas conversas com várias organizações e vários profissionais envolvidos nisso.
Para muitas organizações, os compromissos de equidade são o único meio de rastrear o progresso nessas questões e não há como fugir do enfrentamento: é preciso trabalhar na ideia de sustentabilidade humana, ou seja: o quanto uma organização cria valor para as pessoas, a começar por aquelas que trabalham para ela.
Numa instituição de educação, como em todas as outras, estamos falando de uma diversidade grande de contratos e modalidades de trabalho, ou seja, de diferentes necessidades de estabilidade e bem-estar que não são consideradas em sua plenitude.
Veja: não estou dizendo que as organizações devem atender aos pedidos dos seus colaboradores, mas sim que devem compreender que, ou as regras são claras, comunicadas de maneira honesta e há diálogo para construção de consensos, ou haverá dissonância, porque as regras ontonômicas e heteronômicas de uma organização, assim como as da sociedade, têm pouca ou nenhuma participação na sua construção das pessoas que serão afetadas por elas.
A gestão de pessoas em qualquer organização não pode prescindir de saúde e bem-estar, desenvolvimento de habilidades, maior empregabilidade, oportunidades de crescimento na carreira, equidade, maior pertencimento e conexão com propósito.
Claro, também não deve prescindir de salários justos, mas se começarmos a falar sobre isso vamos estender esse podcast para muito mais do que o tempo que temos, porque as estruturas de cargos e salários das organizações estão intrinsecamente ligadas à perpetuação das desigualdades que temos na sociedade…
Vou fazer uma pergunta que tem três desdobramentos: o que faz uma gestão ser estratégica, quando podemos abordar o diferencial dos pilares institucionais e qual o papel do gestor para fortalecê-los.
Uma gestão estratégica é aquela capaz de aplicar com eficácia os recursos de que dispõe e explorar as condições favoráveis visando ao alcance de determinados objetivos. Para isso, é fundamental conhecer sobre a atuação da instituição e quais são seus objetivos estratégicos.
Então, vamos aos pilares institucionais: qual é a identidade da instituição, seu posicionamento, seus valores, seu propósito? São poucas as pessoas que trabalham que têm conexão verdadeira com esses pilares, e a responsabilidade sobre isso está no tanto que a comunicação é posicionada como área de apoio dentro das organizações, e não como área estratégica.
Eu trabalho com um conceito de marca que é o rosto da estratégia de negócios. Ou seja: é preciso conexão entre os pilares institucionais e a atuação de uma instituição ou organização.
Também neste campo, há dissonância, vejamos:
- Uma organização que tem como propósito formar profissionais qualificados e comprometidos com a transformação social, mas que está focada na qualidade acadêmica e deixa em segundo plano medidas de diversidade, equidade e inclusão, mantendo um quadro de docentes majoritariamente brancos e cisgênero e não que não se preocupa com a experiência formativa de alunos periféricos, homossexuais, transexuais e travestis, com sua inclusão na comunidade acadêmica.
- Ou uma que se proponha a formar cidadãos críticos e autônomos, capazes de contribuir para a sociedade de maneira ética e responsável, mas que segrega alunos bolsistas.
Na prática, o discurso é fácil, mas a ação encontra barreiras na gestão da organização, que é enviesada pelos preconceitos estruturais que encontramos na sociedade e pela pouca diversidade que há nos cargos de alta hierarquia das organizações.
E para encerrar, Cecília, uma pergunta muito baseada na experiência de quem convive, conversa e circula em vários ambientes institucionais. O que ajuda na gestão de uma organização educativa?
Eu gosto muito de abordar essa questão pelo senso de impacto. Uma organização educativa não produz e comercializa produtos. Ela forma pessoas.
Então, como essa característica fundamental está sendo priorizada pela gestão? Como as pessoas que trabalham nessa instituição se sentem desenvolvidas, por exemplo, para que possam desenvolver outras?
E não estou falando somente dos docentes, mas de todo o corpo administrativo. Falando agora dos docentes, não é só sobre dar cursos de tecnologias, metodologias ativas etc. É também sobre praticar horas/aula decentes, proporcionar condições de trabalho dignas, gestões humanas e dialógicas, de fazer com que mesmo os professores entendam suas posições de influência em relação a colegas e estudantes…
Pensar que uma instituição de educação é um pilar estruturante da sociedade ajuda bastante a adotar práticas de gestão que contribuam para um modelo de sociedade que desejamos, e ele passa, necessariamente, pela diminuição de desigualdades.
Curtiu e quer escutar a conversa? Acesse aqui.